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Artigo de Renan Barbosa, publicado originalmente no Gazeta do Povo:

O que morre quando se faz um aborto? Em junho de 2017, a Editoria de Justiçada Gazeta do Povo começou a publicar uma série de reportagens especiais sobre o tema, analisando a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, ajuizada pelo PSOL no Supremo Tribunal Federal (STF) em março daquele ano e que requer a legalização irrestrita do aborto até a 12ª semana de gestação. Neste Especial, reunimos todos os textos da série e vários outros materiais que publicamos desde então sobre este assunto fundamental. Uma de nossas convicções, baseada em sólida tradição filosófica e jurídica, é de que a vida de cada indivíduo merece proteção desde seu momento biológico inicial, a concepção.

Neste texto, enfrentamos com seriedade e civilidade os melhores argumentos no sentido contrário, sempre com base na ADPF 442, com o objetivo de melhorar o debate público brasileiro sobre o tema, especialmente em um momento tão delicado, em que o STF está sendo provocado a tomar uma decisão de repercussões tão graves. Nosso objetivo, além de informar, é sobretudo aumentar o nível do debate e fugir da retórica estridente que domina a discussão pública. Desde logo, é preciso destacar que este Especial não é (nem deve ser lido como) um ataque pessoal às mulheres que, premidas por circunstâncias íntimas e dolorosas, já fizeram um aborto. Trata-se de uma discussão sobre moralidade, políticas públicas e a proteção geral que o direito deve conceder à vida.

O convite ao diálogo firme, mas sereno, decorre diretamente das convicções desta Gazeta do Povo. Essa postura, por exemplo, pode ser vista no filósofo Christopher Kaczor, que se posiciona a favor da proteção da vida desde a concepção e que faz um agradecimento especial, no primeiro parágrafo de seu livro The Ethics of Abortion [A Ética do Aborto], ao também filósofo David Boonin, que defende a posição contrária: “David Boonin, autor de A Defense of Abortion [Uma Defesa do Aborto], merece especial reconhecimento e gratidão. David leu meu manuscrito inteiro duas vezes e, na segunda vez, me mandou 23 páginas, em espaçamento simples, de comentários, questões, objeções e desafios. Estou especialmente em débito para com ele por este trabalho”. Acreditamos que a mesma maturidade pode ser alcançada no Brasil.

Ao fim e ao cabo, não há neutralidade possível no debate sobre o aborto, porque nele estão em colisão duas concepções morais frontalmente contrárias sobre o valor e a proteção que se devem dar à vida humana desde o momento em que se forma um novo ser, com um código genético único. Cada uma das visões, explícita ou implicitamente, se articula a outras convicções, não só com respeito ao valor da vida, mas aos limites e responsabilidades do Estado frente à dignidade humana. O que buscamos neste texto é a honestidade ao lidar com os fatos e com os argumentos contrários aos da Gazeta do Povo – e de grande parte do povo brasileiro.

Neste Especial você encontra:

Os números do aborto

Os defensores da legalização do aborto costumam dizer que essa medida seria uma forma de enfrentar a mortalidade de mulheres como problema de saúde pública. A petição inicial da ADPF 442 apela para esse argumento, mas de forma seletiva. Há diversos casos no mundo em que os números mostram que a legalização do aborto não tem uma correlação segura com baixos índices de mortalidade materna ou com a redução destes. Antes de analisarmos o cerne da controvérsia, é preciso limpar o terreno e ter claras as dificuldades com os números sobre o tema.

As autoras da ADPF 442 destacam a questão da saúde pública quando dizem que “estudos recentes estimam que entre 8 e 18% de mortes maternas no mundo decorram de abortos inseguros, e estão concentradas em países pobres” e que “cerca de metade das mulheres que fez um aborto ilegal no país [Brasil] precisou ser internada”. Mas a primeira constatação desconsidera os dados que mostram que é a falta de investimento na saúde básica, e não a legalização do aborto, o fator preponderante na redução dos índices de mortalidade materna. A segunda afirmação, quando analisada com cuidado, revela inconsistências com o suposto número de abortos ilegais que se alardeia no país.

Pintar esse quadro, sem maiores qualificações, é fundamental para um passo do argumento jurídico da ADPF 442, que será analisado mais adiante. Segundo as autoras, é importante a “evidência de que os países de legislação protetiva aos direitos das mulheres apresentam taxas decrescentes de aborto em série histórica, ou mesmo mais baixas quando comparados aos países com legislação mais restritiva. Isso significa que é com a descriminalização do aborto e com as ampliações nas políticas de planejamento familiar que mais eficazmente pode se proteger o valor intrínseco do humano”.

A petição inicial da ADPF 442 afirma que “a Pesquisa Nacional do Aborto [PNA] 2016 mostra que, somente em 2015, 417 mil [sic] mulheres realizaram aborto no Brasil urbano e 503 mil mulheres em extrapolação para todo o país”. A PNA 2016 afirma também que cerca de metade das mulheres que realizaram abortos precisaram ser internadas por alguma complicação, o que repete a constatação da PNA 2010. Já os dados reunidos pelo DataSUS revelam que, no mesmo ano, cerca de 200 mil mulheres passaram por internação hospitalar em decorrência de aborto, incluindo abortos espontâneos.

“Se 416 mil mulheres teriam feito aborto em 2014 e cerca de metade dessas mulheres foi internada para finalizar o procedimento, há uma incoerência com os dados do SUS, que mostram que houve cerca de 200 mil internações por aborto em 2014. Mas os abortos espontâneos, que parecem não estar sendo considerados na pesquisa, geram muitas internações”, diz Lenise Garcia, professora da Universidade de Brasília (UnB) e presidente do Movimento Brasil sem Aborto.

“A Pesquisa Nacional do Aborto de 2016 levanta ainda outras dúvidas. As próprias autoras colocam que os resultados para toda a população feminina total devem ser tomados com extrema cautela para extrapolar os dados a partir do universo de 2.002 mulheres urbanas e alfabetizadas que foram entrevistadas, mas não é isso que dão a entender quando trazem este assunto à mídia”, diz Lenise. “Também não fica claro se o modo como é feita a pergunta não acaba incluindo o número de abortos espontâneos. Provocar um aborto, ter um aborto, fazer um aborto, são coisas diferentes de se perguntar”, completa.

Consultada pela Gazeta do Povo sobre os pontos levantados, Débora Diniz, professora da UnB e uma das autoras da PNA 2016, afirmou que “as mulheres não necessariamente se internaram no SUS, por isso não é possível fazer a comparação dos dados. Além disso, é preciso verificar se os dados que obteve se referem apenas a curetagens – o que frequentemente é o caso –, e nem todas as mulheres que se internam por complicações por aborto necessitam de curetagem”. Sobre a questão da pesquisa, Débora elucidou que “o instrumento foi pré-testado para evitar incompreensões, e a pergunta era “você já fez aborto alguma vez’”.

Lenise destaca ainda que, de qualquer maneira, o número de abortos supostamente encontrados pela PNA 2016 é bem menor que o alardeado por alguns ativistas, que já falaram em até 1,5 milhão de abortos por ano no Brasil.

Gazeta do Povoem reportagem de 2017, voltou a analisar a questão dos números. O texto traz à tona informações relevantes, quase sempre não destacadas no debate. Por exemplo, que as internações em consequência de aborto vêm diminuindo desde 2009.

No mundo

Essa guerra de números não é exclusividade do debate público brasileiro. A mesma coisa ocorreu no Uruguai, onde o aborto foi legalizado no final de 2012. Chegou-se a falar em 55 mil abortos anuais no país vizinho. Desde 2003, a partir de uma pesquisa de Rafael Sansevieiro, falava-se em 33 mil abortos por ano. Porém, em 2013, no primeiro ano da vigência da nova lei do aborto, apenas 6.676 procedimentos foram realizados. Desde então, o número vem subindo e, em 2016, chegou a 9.719 procedimentos. Ativistas pró-aborto do país insistem que a diferença se deve à subnotificação.

Para Lenise Garcia, a experiência da França e dos Estados Unidos, que legalizaram o aborto na década de 1970, confirmaria a tendência no Uruguai. “O número total de abortos nos EUA e França aumentou muito. Depois de muitos anos, existe uma estabilização e até uma pequena queda, muito provavelmente relacionada à diminuição da gravidez indesejada. Mas em alguns lugares, depois da legalização o número de abortos aumentou em mais de 10 vezes”, afirma. “O que não dá para aceitar é usar números inflados de estimativas anteriores à legalização e dizer que, depois da mudança da lei, o número de abortos diminuiu”, completa.

Quando se comparam os dados ao redor do mundo sobre mortalidade materna, legalização do aborto, e o número de abortos efetivamente realizados, é difícil encontrar uma correlação significativa. Inúmeros fatores estão em jogo, mas a complexidade é ignorada pela retórica pró-aborto. Há países, por exemplo, que reduziram drasticamente a mortalidade materna nas últimas décadas, embora tivessem leis extremamente restritivas, como é o caso do Chile. O próprio Brasil derrubou os índices de mortalidade materna sem mudar a legislação penal sobre o aborto.

De acordo com dados do Banco Mundial, em 1990, a mortalidade materna no Chile era de 57 mulheres a cada 100 mil nascimentos com vida. A legislação chilena sobre o aborto era, até agosto de 2017, uma das mais restritivas do mundo: o procedimento não era permitido nem em caso de estupro ou risco de vida à mãe. Apesar disso, o índice de mortalidade materna caiu nas últimas décadas e, em 2015, estava em 22 mulheres a cada 100 mil nascimentos com vida. No mesmo período, as taxas brasileiras caíram de 104 para 44 óbitos de mulheres a cada 100 mil nascimentos com vida.

Quem olhasse levianamente para os dados do Uruguai em 2015, quando morreram apenas 15 mulheres a cada 100 mil nascimentos com vida, poderia supor que a taxa mais baixa tem algo a ver com a legalização do aborto. Mas não parece ser o caso. O Uruguai sempre teve taxas mais baixas, quando comparadas às do Brasil ou do Chile e, desde 1990, o índice vinha caindo paulatinamente, acompanhando a experiência latino-americana.

O mesmo não pode ser dito da Rússia ou de Cuba. A ilha caribenha foi o primeiro país latino-americano a legalizar o aborto, em 1965, mas registrou, em 2015, 39 óbitos a cada 100 mil nascimentos com vida. Na Rússia, onde o aborto foi legalizado em 1955 – Stálin havia revertido, em 1936, a descriminalização levada a cabo ainda em 1920 pelos bolcheviques vitoriosos –, a mortalidade materna foi de 25 mulheres a cada 100 mil nascimentos com vida em 2015, maior que a taxa chilena.  Durante a crise dos anos 1990, a mortalidade materna na Rússia chegou a 88 óbitos a cada 100 mil nascimentos com vida, o mesmo número que o Brasil tinha no mesmo ano de 1994.

Rússia e Cuba também são exemplos de como a descriminalização não leva, necessariamente, à diminuição do número de abortos. Os dois países estão há décadas entre os que apresentam os maiores números relativos de procedimentos abortivos, com índices girando em torno de 40 abortos para cada 1 mil mulheres entre 15 e 44 anos. Para se ter uma ideia, mesmo aceitando os números da última PNA, essa taxa no Brasil seria por volta de 13 abortos para cada 1 mil mulheres entre 18 e 39 anos, um pouco abaixo dos números de França e Estados Unidos.

O caso da Polônia também chama a atenção, porque parece confirmar que a criminalização do aborto não tem relação necessária com a saúde pública. Em 1990, quando o aborto ainda era legalizado no país, graças à herança soviética, a taxa de mortalidade materna era de 17 óbitos para cada 100 mil nascimentos com vida. Em 1993, o aborto voltou a ser criminalizado naquele país, com exceções semelhantes às do Brasil. De lá até 2015, esse número já tinha caído para 3 a cada 100 mil nascimentos com vida. São índices melhores que os de todos os grandes países da Europa Ocidental que legalizaram o aborto nas últimas décadas.

O caso da África do Sul, que legalizou o aborto em 1996, também é paradigmático. Naquele ano, a taxa de mortalidade materna no país era de 60 mortes para cada 100 mil nascimentos, mas escalou, acompanhando a crise de saúde pública, para 154 mortes para cada 100 mil nascimentos em 2010. Além disso, mesmo com a legalização, estima-se que cerca de metade dos abortos ainda são feitos na clandestinidade, devido aos gargalos no sistema de saúde e negativa de muitos médicos e profissionais de saúde, por motivos morais ou religiosos, de levarem a cabo o procedimento. Por essa razão, defensores do aborto costumam também atacar a liberdade de médicos e profissionais de saúde de agirem conforme a própria consciência e se recusarem a fazer abortos. Por isso, em todo o mundo, a chamada objeção de consciência está sob ataque.

Seja como for, para a presidente do Movimento Brasil sem Aborto, esses exemplos mostram que o fator decisivo na redução da mortalidade materna são os investimentos em saúde básica e no cuidado pré-natal. “Nossa maior causa de mortalidade materna no Brasil é, de longe, a pressão alta das gestantes e isso é pura falta de cuidado pré-natal e investimento em saúde básica. Por que esses grupos que se dizem tão preocupados com a saúde das mulheres não estão atuando nessa área?”, questiona Lenise. “Não é o aborto que pesa nos índices de mortalidade materna”, enfatiza a professora.

Qual é o papel da ciência

Uma frase muito comum de ser ouvida no debate sobre o aborto é que “a ciência não chegou a um consenso sobre quando começa a vida”. Essa afirmação serviu inclusive para o Truco — projeto de checagem de fatos da Agência Pública — classificar como falsa uma afirmação contrária que consta da PEC 181/2015. Naturalmente, essa afirmação é mobilizada como parte do argumento de que, se não há consenso sobre isso, então pode ser que o aborto, dependendo da época em que for feito, não acarrete o fim de uma vida humana.

A constatação de que dizer quando a vida começa seria um assunto científico não é falsa, mas é profundamente incompleta, como explica Mathew Lu em artigo publicado em português por esta Gazeta do Povo. A ciência — neste caso, a embriologia —  pode descrever e entender um processo material; ela pode, neste caso, conforme se desenvolve a tecnologia, perceber que, a partir da fecundação, existe um novo ser vivo, único, irrepetível e que, se nenhum fator externo impedir isto, se desenvolverá em um ser humano adulto.

A questão, porém, como enfatiza Lu, é que “determinar quais critérios são os corretos para assegurar que um ser vivo existe não é uma questão empírica. Em vez disso, a resposta de um indivíduo para essa questão será formada com base no seu entendimento do que é um ser vivo – ou seja, a sua metafísica da vida”. Ou, em outras palavras: “A ‘ciência’ pode nos dizer quando a vida começa, desde que já saibamos o que procurar. A biologia empírica por si só não pode nos dizer isso. Quando estabelecermos um parâmetro metafísico sobre a vida, aí sim a embriologia empírica poderá nos dizer se as condições relevantes são cumpridas”.

O filósofo Christopher Tollefsen, por outro lado, dialogando com Mathew Lu, levantou questões importantes. Tollefsen que é autor, juntamente a Robert P. George, do livro Embryo: A Defense of Human Life (Embrião: Uma Defesa da Vida Humana, em tradução livre), nota que os biólogos não precisam esperar a filosofia resolver todas as questões antes de dar um veredito sobre o corpo de fenômenos que pretende descrever.

A embriologia nos diz duas coisas importantes sobre os embriões humanos: o que eles são e quando eles começam a existir. Ela nos diz que os embriões humanos são seres humanos em um certo estágio (muito prematuro) de desenvolvimento e que, na grande maioria dos casos, esses seres humanos começam a existir na concepção, o início de um organismo unicelular após a fertilização de um óvulo por um espermatozoide.

O filósofo Francisco Razzo, colunista desta Gazeta do Povo e autor dos livros A Imaginação Totalitária e Contra o Aborto, destacou a questão de forma exemplar neste último livro:

Os seres humanos não são pessoas em virtude apenas de possuir certas qualidades e funções psicológicas, pelo contrário, são pessoas em virtude de sua própria realidade objetiva — e, no caso dos embriões, estão concretamente presentes como corpo e em um corpo. Ser pessoa é uma condição ontológica radical e não resultado de certo desenvolvimento neurobiológico. O conceito “ontológico” refere-se à sua realidade enquanto tal, em si mesma, e que não depende de nossas percepções psicológicas para ser o que se é. Aspectos físicos, biológicos, psicológicos, econômicos e sociais só fazem sentido quando pensados à luz da ontologia: o terreno de todas as nossas reflexões é filosófico”, Francisco Razzo, em Contra o Aborto.

Quando se entende isso, entende-se também que a resposta para a controvérsia moral e jurídica sobre aborto nunca virá, definitivamente, da ciência. Por isso, os filósofos e ativistas pró-aborto mais refinados não argumentam a partir de uma suposta falta de consenso científico sobre o tema. Muitos nem negam que, a partir da fecundação, exista um novo ser humano vivo. O que eles negam é que o valor moral (e jurídico) deste novo ser seja o mesmo de um ser humano já nascido ou adulto. Esse é o principal debate que serve de pano de fundo para a ADPF 442.

Pessoa constitucional: de volta à ADPF 442

Analisados os números sobre o tema e o papel da ciência na discussão, que são importantes também como pano de fundo à discussão moral e jurídica, é hora de voltar à ADPF 442. É interessante notar, de saída, que, apesar do esforço para organizar um argumento, o documento assinado pelo PSOL aborda várias questões; até mesmo alguns ministros do STF, que deveriam se pronunciar apenas nos autos dos processos, muitas vezes repetem partes de argumentos ruins a favor do aborto em eventos e na imprensa. Por isso, a Gazeta do Povopublicou um artigo do filósofo David Hershenov analisando dez argumentos ruins, mas populares, sobre o aborto:

Objetivo de identificar [esses argumentos] não é destruir uma série de falácias do espantalho; é, na verdade, chamar atenção à predominância de argumentos fracos que sustentam a popularidade do lado pró-vida dessa discussão. Muitos dos meus estudantes chegam à minha aula de ética médica convencidos de que o aborto é justo sem ter nenhuma familiaridade com a literatura filosófica”.

De todo modo, lido à melhor luz, o documento assinado pelo PSOL segue duas linhas argumentativas. Uma delas, que será tratada mais adiante, pretende demonstrar a legalidade (possibilidade jurídica) do aborto por meio da ponderação entre o direito à vida do ser humano em gestação e outros direitos fundamentais das mulheres. A ponderação é uma técnica decisória que legisladores, tribunais e outros responsáveis pela aplicação do direito utilizam para decidir casos em que direitos fundamentais estão em conflito.

A outra linha de argumentação é que o ser humano, antes de nascer, não tem direitos fundamentais, porque não seria uma “pessoa constitucional”, mas apenas uma “criatura humana intraútero”. Só depois de nascer é que os seres humanos seriam plenamente protegidos pela Constituição Federal. Embora sejam analiticamente independentes, essas visões se retroalimentam retoricamente, na medida em que diminuir o status constitucional dos seres humanos não nascidos opera para desequilibrar em favor dos “interesses” da mulher o resultado da ponderação que os autores da ação propõem para resolver o conflito entre os direitos de fetos e embriões e os direitos da mulher.

Por isso, é duplamente importante tratar da distinção entre “pessoas constitucionais” e “criaturas humanas intraútero”. Esses termos também foram utilizados pelo ministro Marco Aurélio Mello em seu voto na ADPF 54 – que tratava do aborto de fetos anencéfalos. De acordo com essa ideia, o direito à vida, inscrito no artigo 5º da Constituição, só vale de forma plena para seres humanos já nascidos. Aos seres humanos em gestação, pela potencialidade de virem a adquirir vida no sentido jurídico, pode-se até garantir alguma proteção por meio de leis ordinárias “contra tentativas levianas ou frívolas de obstar sua natural continuidade fisiológica”, nas palavras da decisão do tribunal na ADI 3.510 – que liberou as pesquisas com células-tronco embrionárias –, mas não a proteção constitucional que se dá a uma pessoa já formada.

Embora o artigo 5º da Constituição diga, ao garantir a inviolabilidade do direito à vida, que todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza, a primeira atitude dos defensores do aborto na ADPF 442 é justamente fazer uma distinção entre seres humanos nascidos e não nascidos. Os autores da ação afirmam que “reconhecer valor intrínseco no pertencimento à espécie humana não é o mesmo que designar todas as criaturas humanas como pessoas constitucionais e, consequentemente, a elas conferir direitos e proteções fundamentais”.

A distinção entre “pessoa constitucional” e “criatura humana intrauterina” é arbitrária. Pode-se até discutir, com um pouco mais de base no que os tribunais brasileiros vêm fazendo, o que fazer em caso de “conflito de interesses” entre uma mulher que queira abortar e um feto que esteja vivo. Mas cravar uma distinção abismal entre as duas categorias de seres humanos é algo que carece de fundamentação constitucional adequada.

De acordo Angela Martins, advogada e Ph.D. em Filosofia do Direito que assina um dos pedidos de amicus curiae (amigo da corte) no processo, “essa distinção não tem sentido: eu posso matar alguém um minuto antes do parto e um minuto depois não posso mais? Desde a concepção, o embrião já é uma pessoa única que contém seu código genético próprio”. E diz ainda: “o direito deve acompanhar a realidade. O ser humano é pessoa desde a concepção, porque ela não tem outra natureza antes de ser pessoa humana”.

O Código Civil brasileiro, em seu artigo 2º, estabelece que a personalidade jurídica começa no nascimento com vida, mas o mesmo artigo põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. Esse dispositivo legal é muitas vezes lembrado por defensores da legalização do aborto. Duas coisas, no entanto, devem ser levadas em conta. Primeiro, é um equívoco interpretar a Constituição à luz do Código Civil, quando o que deve ser feito é justamente o contrário. Segundo, nada no texto constitucional ou na tradição jurídica brasileira autoriza essa distinção, senão o raciocínio recente de alguns ministros do STF e as afirmações dos autores da ADPF 442.

“O mundo jurídico precisa de uma formalização, mas isso não diz respeito à natureza das pessoas. Não há contradição entre o princípio da Constituição, que garante o direito à vida a todas as pessoas, e a regra civil. Na prática, o Código Civil só está dizendo que o nascituro não pode ser registrado no mundo jurídico, mas ele tem garantidos todos os seus direitos desde a concepção, porque a Constituição quer protegê-lo também, quer garantir o direito que ele venha a entrar no mundo jurídico”, afirma Angela.

Mesmo que o ser humano não nascido não tenha personalidade jurídica, se o Código Civil põe a salvo os direitos do nascituro desde a concepção, ele assegura, logicamente, o direito à vida de quem vai nascer – incluindo o direito de nascer –, pois da vida dependem todos os demais direitos para se concretizarem. Que lógica haveria na lei assegurar os direitos do nascituro desde a concepção se o STF autorizasse a mãe e os médicos a privá-lo, até o terceiro mês de gestação, do direito de nascer e, portanto, de ter todos os demais direitos assegurados pela lei?

Os argumentos da petição inicial da ADPF 442 para sustentar essa distinção artificial revelam ainda outras posições temerárias. O documento afirma, reconhecendo que o conceito de “pessoa constitucional” é controverso, que “não há controvérsia jurídica sobre o reconhecimento do estatuto de pessoa constitucional a recém-nascidos, crianças, adolescentes, adultos ou idosos, em qualquer circunstância de vivência do corpo, dependência, deficiência ou envelhecimento”.

A decorrência lógica dessa posição é clara: se o tempo sedimentar uma controvérsia forte quanto ao reconhecimento do status de pessoa constitucional a um outro grupo de seres humanos além dos não nascidos, então o Judiciário poderá vir a decidir que também eles não têm direitos constitucionais. Não se trata de apelar para o argumento da “ladeira escorregadia”, mas de firmar posicionamentos claros sobre quais direitos o Judiciário deve proteger quando o Estado ou as pessoas reivindicarem para si o direito de matar alguém.

No artigo Legalização do Aborto e Constituição, Daniel Sarmento, professor de Direito Constitucional e precursor, no Brasil, da posição que fundamenta a ADPF 442, talvez antevendo a objeção acima, faz uma ressalva: “é claro que se a legislação ordinária negasse personalidade a quem é pessoa – como no passado se fazia com os escravos – ela seria inválida, por manifesta inconstitucionalidade. Isto porque, o primeiro direito humano é o que cada indivíduo tem de ser tratado e considerado como pessoa”.

A posição de Sarmento escamoteia o que está em jogo. O argumento do professor de Direito Constitucional só parece fazer sentido porque ele supõe, de antemão, que embriões não sejam indivíduos, em razão da gradualidade no desenvolvimento biológico. Mas estabelecer o marco que separa indivíduos – que, pelo argumento do professor, teriam direito à personalidade – de não indivíduos, em qualquer momento posterior à concepção, será sempre arbitrário. Crianças recém-nascidas, quando comparadas a jovens na flor da idade, ainda estão em desenvolvimento. O STF aceitará um argumento que, por sua estrutura lógica, pode abrir as portas para a legalização do infanticídio?

Angela Martins também considera grave relativizar o direito à vida. “É claro que as pessoas podem ir adquirindo direitos ao longo da vida, como o direito de ter carteira de motorista. Mas o direito à vida é fundamental, ele é a origem de todos os direitos. No momento que o Estado tira o direito à vida, ele está sujeito a tirar todos os outros. Um direito fundamental não pode ser manipulado dessa forma”, diz. “Qualquer ficção legal deve sempre ser aplicada para aproximar o direito da vida, como para tornar filho a criança adotada, e nunca para distanciar o direito da vida, distanciando o embrião da sua natureza de pessoa”, completa.

Nelson Hungria, um dos maiores criminalistas brasileiros e ministro do STF entre 1951 e 1961, não tinha dúvidas sobre a personalidade do ser humano em gestação. No quinto volume de seus Comentários ao Código Penal, Hungria afirma, comentando a correção de o aborto ser considerado um crime contra a pessoa, que o feto “é um subjectum iuris[sujeito de direito], podendo dizer-se que tem caráter de pessoa” e que “o interesse jurídico relativo à vida e à pessoa é lesado desde que se impede a aquisição da vida e da personalidade civil a um feto capaz de adquiri-las (…) Quem pratica um aborto não opera in materiam brutam [sobre matéria bruta], mas contra um homem na antessala da vida civil”.

Não por acaso, a legislação brasileira e a jurisprudência do país sempre foram parcimoniosas no tratamento dessa questão. Desde 1940, com o Decreto-Lei que instituiu no Brasil o Código Penal em vigor – no qual, frise-se, o aborto é crime contra a pessoa –, a lei penal escolhe não punir apenas abortos consentidos pela mãe no caso de gravidez resultante de estupro e de procedimento médico necessário para salvar a vida da gestante. É um equívoco reconhecer nessas situações uma prova de que o direito dá menos valor à vida do feto que à da mulher – pois a lei pode abrir mão da punição, ou cominar uma pena menor, em razão não da dignidade menor da vítima, mas da situação dramática da mãe. Achar que se pode, a partir dessas duas exceções, legalizar o aborto no atacado, até o terceiro mês de gestação, é um equívoco maior ainda – ou, como se chama em lógica esse tipo de falácia, um non sequitur.

Gazeta do Povo já tratou dessa distinção delicada em diversos Editoriais. Dois dos mais recentes são “A defesa da vida na Constituição” e “O PSOL e o drama do aborto”:

O legislador, ao prever as duas circunstâncias do artigo 128, considerou que era preciso poupar o médico que, ao tentar preservar ambas as vidas, acaba tendo de optar pela mãe em detrimento do filho; ou a gestante que já traz consigo o sofrimento da violência sexual e considerou não haver outra opção a não ser abortar o fruto daquela agressão”

O direito brasileiro, a rigor, também não nega que possa haver outras situações dramáticas que mereçam ser nuançadas. A dogmática penal tem, na teoria do crime, o instrumento de análise da culpabilidade da conduta, de sua reprovabilidade social, para decidir se uma conduta típica e antijurídica é mesmo, ao fim e ao cabo, um crime que merece ser punido. O juízo que a lei faz em geral nessas duas situações dramáticas também é facultado ao juiz fazer nos casos concretos, a depender das circunstâncias. Essa é a forma que o direito sempre teve de sinalizar que protege a vida, mas não desconsidera o drama das mulheres. Uma decisão que descriminalize o aborto até o terceiro mês de gravidez talvez leve em conta o drama das mulheres. Mas o que sinalizará em termos de proteção à vida?

Nos Estados Unidos, porém, a Suprema Corte decidiu, no caso Roe vs Wade, de 1973, que as mulheres têm direito a abortar, com base em seu direito à privacidade, até o momento da viabilidade extrauterina do feto, que ocorre por volta dos seis meses. Esse momento varia de acordo com as condições tecnológicas disponíveis. Por isso, a corte adotou o critério prático dos trimestres para impedir, até os três meses de gestação, quase toda intervenção estatal para proteger a vida do feto. As advogadas que assinam a ADPF 442, por sua vez, escrevem no documento inicial que “o marco dos trimestres acompanhava o desenvolvimento da gestação no fundamento de quanto mais imaturo o feto maior o respeito ao direito de privacidade das mulheres” [destaque nosso]. Mas essa noção gradualista não é moralmente neutra e será explorada mais adiante.

Em 1992, no caso Planned Parenthood. vs. Casey, em meio a um intenso debate na sociedade americana, que continua vivo até hoje, o tribunal corrigiu seus rumos e reconheceu que o Estado tem, sim, o direito de proteger fetos viáveis em quaisquer circunstâncias, exceto no caso de risco de vida para a mãe. A decisão também diminuiu o rigor para avaliar leis restritivas ao aborto: as leis estaduais podem proibir a prática, mesmo de fetos ainda inviáveis fora do útero, exceto se isso impuser um “fardo indevido” para a mulher.

Um ano depois, foi a vez de a Corte Constitucional da Alemanha considerar constitucional uma lei que permitia o aborto até a 12ª semana de gravidez, desde que a mãe passasse por aconselhamento profissional antes de realizar o procedimento. O tribunal considerou que “a Lei Fundamental requer que o Estado proteja a vida humana, incluindo a dos não nascidos” e que “a mãe tem o dever de levar a cabo a gestação”. Entretanto, a corte também decidiu que a Constituição não impõe esse dever às mulheres em todos os casos e que a lei pode criar exceções à regra geral para evitar que sejam submetidas a “fardos que demandem tamanho sacrifício de seus próprios valores existenciais a ponto de que não se possa esperar delas que continuem a gestação”.  A decisão reverteu o caso Aborto I, em que a corte tinha considerado inconstitucional uma lei que permitia o aborto.

As autoras da ADPF 442 citam esses julgamentos, entre outros, para mostrar como diversos países adotaram a ponderação de valores – que será escrutinada adianta – para resolver as demandas envolvendo a questão do aborto, mas ignoram que essas decisões continuam polêmicas e sob intenso escrutínio da opinião pública e das discussões em filosofia moral e jurídica. A adequação desses critérios, mesmo nesses países, está longe de ter sido considerada correta e, por si só, não tem muito a acrescentar ao debate brasileiro. Na verdade, o que muitos tribunais constitucionais têm feito é assumir uma das posições em jogo no acalorado debate moral sobre o aborto e apresentá-lo como uma solução viável. O real desafio é discutir se essa é a melhor solução.

O que é uma pessoa

Quase todos os argumentos que tentam estabelecer um critério outro que não o momento da concepção de uma nova vida como o marco para a proteção moral ou jurídica dessa vida enfrentam o mesmo problema: a consequência lógica de que outros grupos de seres humanos – como bebês recém-nascidos, pessoas em coma ou deficientes mentais – tampouco estariam protegidos pelo direito.

Christopher Kaczor, no livro The Ethics of Abortion, chama essas posições de “concepções funcionalistas da personalidade”, segundo as quais um ser só merece respeito como pessoa se funcionar (cumprir certa função) de determinada maneira: se já tiver autoconsciência, se já tiver nascido, se já for viável fora do útero, se já sentir dor. Há muitos marcos arbitrários à disposição dos filósofos morais.

Os filósofos Michael Tooley e Peter Singer, por exemplo, não veem, a princípio, nada de errado nem no aborto, nem no infanticídio de recém-nascidos. Para Singer e Tooley, o mero pertencimento de um ser humano à espécie humana – o que, como fenômeno biológico, ocorre na concepção – não garante que ele seja uma “pessoa moral” com um direito à vida. O critério relevante para determinar quando é errado acabar com a vida biológica seria o momento em que um ser passa a ter uma “concepção de si mesmo” como um sujeito de uma continuidade de experiências. Afinal, só quem tem essa autoconsciência sabe que está vivo, pode fazer planos e tem interesses que se prolongam no tempo. Trocando em miúdos, estão dizendo que não há nada de errado em matar quem não sabe que está sendo morto.

Kaczor, assim como outros filósofos, aponta a dificuldade óbvia nessa posição: pessoas adormecidas ou anestesiadas poderiam ser mortas sem problemas enquanto permanecem inconscientes. Uma saída para os defensores dessa ideia quase sempre é dizer que não importa a consciência sendo exercida num determinado período, mas a configuração neurológica que torna possível ter consciência. Mas isso não justifica nada: ter um cérebro é condição necessária, mas não suficiente, para ser autoconsciente. Ter um coração funcionando é tão condição necessária para a autoconsciência quanto ter um cérebro. Do fato de determinarmos o momento da morte biológica, por razões pragmáticas, como a morte cerebral tampouco se segue que só exista vida digna de ser protegida quando há autoconsciência.

Mary Anne Warren, destacada filósofa americana, desde a publicação de The Personhood Argument in Favor of Abortion, em 1973, tentou pensar o nascimento como um critério prático para resolver esse embate. Embora Warren também tenha uma concepção funcionalista da personalidade, na prática, para ela, apenas o aborto – e não o infanticídio – deveria ser permitido, uma vez que somente durante a gestação a existência de um ser vivo pode entrar em conflito direto com o direito da mulher sobre o próprio corpo. Mas essa posição contraria nossas intuições morais em pelo menos dois aspectos. Primeiro, um ser humano concebido in vitro teria mais direitos do que um feto de oito meses. Segundo, se uma mulher quisesse, ainda durante o parto, desistir de ter o filho, não haveria nada errado em matá-lo.

Essa miríade de critérios – que deveriam indicar, na visão de diferentes filósofos, o momento que marca o início da proteção da vida biológica – dá origem ao que Kaczor apresenta como a “posição gradualista”, que subjaz às decisões das cortes constitucionais nos últimos 50 anos. “Embora cada critério proposto, tomado por si só, possa não ser condição suficiente para a personalidade, tomados em conjunto eles levam à conclusão de que o direito à vida se fortalece gradualmente enquanto a gravidez prossegue”, escreve o filósofo. Se tantos outros direitos são conquistados gradualmente, por que não o direito à vida?

“A diferença radical que existe entre o direito à vida e outros direitos, como o direito de votar, não se funda apenas no fato de que, sem o direito à vida, uma pessoa não pode exercer qualquer outro direito. Votar, dirigir e ocupar um cargo eletivo são exemplos de direitos que têm responsabilidades correlatas [a seu exercício]”, escreve Kaczor. Estar vivo é um direito que não implica responsabilidade alguma até o que sujeito tenha condições de assumi-las. De fato, no direito brasileiro, por exemplo, a capacidade civil começa em parte aos 16 anos e completa-se aos 18 anos.

Mas será que nós já não reconhecemos como mais grave matar um adulto do que um feto? O Código Penal brasileiro não faz justamente isso ao prever penas diferentes para o aborto, o infanticídio e o homicídio? Da mesma forma que Angela Martins discutiu mais acima, Kaczor diz que “Todo ato de matar viola o direito à vida, que é igual para todas as pessoas humanas inocentes. Não se segue disso que matar um embrião e matar um adulto seja igualmente errado em todos os outros aspectos. Muitas vezes, uma ação será errada por mais de um motivo”. Isso justificaria o tratamento diferente entre o aborto, o infanticídio e o homicídio, sem assumir a posição de que a vida vale menos em fases diferentes do desenvolvimento – um argumento que os defensores do aborto tentam mobilizar.

Kaczor resume o que realmente está em jogo: “Em assuntos de vida e morte, nós temos que fazer melhor do que eleger um ponto de corte arbitrário. A própria vida está em risco, a existência de seres humanos inocentes, de modo que uma concepção de personalidade que se fundamente em decisões arbitrárias dos poderosos contra os vulneráveis não pode ser justa ou igualitária”.

O blogueiro Caio Coppolla, em vídeo para a Gazeta do Povo, apresentou uma versão resumida deste argumento:

Kaczor apresenta, em contraposição às concepções funcionalistas da personalidade, o que chama de uma “concepção atribuída da personalidade”. Uma formulação dessa ideia está nas palavras de Robert P. George e Patrick Lee, no artigo Acorns and Embryos, publicado em 2005:

A posição chave dos opositores da matança de embriões é que todos os seres humanos, independentemente da idade, do tamanho, do estágio de desenvolvimento ou de condições de dependência, possuem igual e intrínseca dignidade em virtude do que são (isto é, da espécie de entidade que são), e não devido a quaisquer traços acidentais, que podem ir e vir e que estão presentes nos seres humanos em graus diferentes.”

O filósofo Francisco Razzo, colunista desta Gazeta do Povo e autor do livro “Contra o Aborto”, formulou esse argumento de forma exemplar a partir do debate brasileiro, destacando, em especial, que defender o valor da vida desde a concepção não depende de nenhuma crença religiosa:

O processo biológico, tal como se dá o desenvolvimento das funções cerebrais e qualidades psicológicas correspondentes, não ocorreria se não fosse em virtude da própria natureza racional de essência individual chamada pessoa. O que não é evidente é alegar que apenas através do estudo da biologia é possível concluir a realidade humana. Muitas vezes é preciso recorrer à evidência do bom senso e lembrar que, assim como o indivíduo de natureza felina chamado gato e o indivíduo de natureza canina chamado cachorro não desenvolvem processos biológicos distintos daquilo que eles já são enquanto gato e cachorro, o indivíduo pessoal não deixa de desenvolver aquilo lhe é próprio de sua natureza. O que não é evidente é o caso de alegar que filhos de pessoas se tornam primeiro seres humanos para depois, por força do consenso, se tornarem pessoas.”

Proporcionalidade: ADPF 442, mais uma vez

Em um dos textos mais famosos da história da ética no século XX, Uma Defesa do Aborto, publicado em 1971, a filósofa Judith Jarvis Thomson propôs a seguinte ideia: mesmo que o embrião ou o feto tenham direitos, isso não obriga a mãe a continuar grávida se não quiser. Thomson reconhece que “por volta da décima semana, o feto já tem um rosto, braços, pernas e dedos; tem órgãos internos e atividade cerebral”, mas diz que não vai discutir nada disso.

A forma do raciocínio de Thomson é muito parecida com a estrutura da petição inicial da ADPF 442. Tanto a filósofa quanto as advogadas do caso aceitam a premissa de que o ser humano não nascido é uma pessoa que tem direito à vida, para logo dizer que, no conflito com o direito ao corpo da mulher, prevalece este último.

“É interessante perguntar o que acontece se, para fins do argumento, nós aceitarmos a premissa [de que o feto é uma pessoa] (…) Estou argumentando apenas que ter direito à vida não garante nem que alguém tenha direito de usar o corpo de outra pessoa, nem que tenha o direito de continuar a usá-lo – mesmo se esse alguém precisar desse corpo para manter a própria vida”, escreveu Thomson em 1971.

Cinco décadas depois, as advogadas da ADPF 442 escrevem: “Na questão do aborto, como já demonstrado no item 4.1 desta ADPF, não haveria conflito entre direitos fundamentais, dada a impossibilidade de se imputar direitos fundamentais ao embrião ou feto. Como um exercício argumentativo concorrente, no entanto, seria uma ponderação entre os direitos fundamentais das mulheres e o respeito ao valor intrínseco do humano no embrião ou feto”.

A petição inicial da ação propõe, como exercício argumentativo, que mesmo se embriões e fetos tiverem direitos fundamentais – o que, na visão das autoras, eles não têm, porque não são “pessoas constitucionais” –, a proibição irrestrita do aborto seria inconstitucional, porque violaria desproporcionalmente uma série de direitos das mulheres: a sua dignidade; a proibição da discriminação; a liberdade e a vida das mulheres; a proibição da tortura e de tratamentos desumanos e degradantes; o direito à saúde; e o direito ao planejamento familiar.

O método da proporcionalidade foi desenvolvido pelo Tribunal Constitucional da Alemanha e ganhou sua mais acabada expressão teórica na obra de Robert Alexy, um dos autores mais citados nas decisões judiciais que buscam aplicá-lo no Brasil, principalmente desde os anos 1990. A versão mais utilizada desse método consiste em avaliar medidas estatais que restrinjam direitos fundamentais a partir de três perguntas:

  1. Essa medida é adequada?
  2. Essa medida é necessária?
  3. Essa medida é proporcional?

O exame dessas perguntas é sempre subsidiário: se a resposta à primeira pergunta for “não”, nem será necessário passar para o exame da segunda. A ação estatal será declarada inconstitucional desde logo. Para as autoras da ADPF 442, a ação estatal de criminalizar o aborto não passa nem pelo crivo da primeira questão. Mas elas propõem que se analise o tema sob o prisma das outras duas para não deixar dúvidas.

Ponderar o direito à vida, entretanto, causa estranheza em muitos juristas. Para Angela Martins, a discussão sobre o aborto não permite a aplicação da proporcionalidade, porque não há conflito de direitos. “A mãe não tem direito a dispor do filho, porque o filho é ser humano desde o momento da concepção. O direito da mulher ao seu próprio corpo existe: ela dispôs do corpo dela para uma relação sexual e assumiu as consequências. Mas o feto não é um membro da própria mãe”, afirma.

Marcelo Azevedo, advogado e doutor em Direito pela PUC-SP, destaca que “em princípio, ninguém se opõe a ponderar direitos, mas isso depende das premissas que se assumem”. Para Azevedo, os direitos das mulheres citados na petição inicial de fato existem, mas encontram uma barreira na vida do ser humano em gestação. “Homens e mulheres têm direitos sexuais e reprodutivos e ao planejamento familiar, mas com responsabilidade. Eu posso matar minha vó paraplégica com Alzheimer por que ela está atrapalhando minha família? O planejamento familiar vai até o limite de não ofender o direito de outras pessoas”, afirma. “Esses exemplos extremos nos ajudam a entender as consequências de uma determinada posição”, completa.

Muitos juízes e doutrinadores costumam repetir a platitude de que não há direitos absolutos no ordenamento jurídico brasileiro para justificar o uso da proporcionalidade – e o abuso dela, o que se convencionou chamar de “farra dos princípios”. Em geral, lembram que nem o direito à vida é absoluto, porque a Constituição prevê a existência de pena de morte em caso de guerra declarada (artigo 5º, XLVII, “a”).

“Há uma única exceção ao direito à vida colocada na Constituição Federal. E o que se diz é exatamente isso: que o direito à vida é um direito absoluto, salvo no caso de guerra declarada”, explica Azevedo. “Da mesma forma, em todos os casos em que o Estado pode tirar a propriedade de alguém, exige-se indenização, salvo em um único caso: expropriar no caso de cultivo de drogas; daí não se segue que o Judiciário possa ampliar as hipóteses em que isso é permitido”, completa.

Adequação

Feita essa ressalva, é hora de analisar o uso do método da proporcionalidade na petição inicial da ADPF 442. Diante da primeira etapa do teste, a adequação, as autoras da ação escrevem que “a criminalização do aborto seria considerada inconstitucional por falta de objetivo legítimo, porém, para seguir a aplicação completa do teste, será avaliada ainda se a criminalização se justificaria como estratégia legislativa capaz de impedir a prática do aborto” e que “os dados empíricos sobre os efeitos da criminalização mostram que a lei penal não impede que abortos sejam feitos e, injustamente, força as mulheres comuns à ilegalidade e aos riscos da clandestinidade, favorecendo um mercado desregulado e arriscado de medicamentos e clínicas inseguras”.

Em um artigo publicado em 2002, fartamente citado na petição inicial da ADPF 442, Virgílio Afonso da Silva, professor de Direito Constitucional da USP e um dos mais destacados estudiosos do método da proporcionalidade, explica a confusão entre “alcançar” e “fomentar” – que seria o termo correto – uma finalidade, criada a partir da tradução do alemão. “Uma medida somente pode ser considerada inadequada se sua utilização não contribuir em nada para fomentar a realização do objetivo pretendido” [destaque nosso], escreve Afonso da Silva.

Não se trata, portanto, de exigir que a medida alcance completamente o fim visado; do contrário, qualquer medida estatal poderia ser julgada inadequada pelos tribunais. A conclusão lógica dessa confusão seria a declaração da inconstitucionalidade de todo o Código Penal, na medida em que ele limita a liberdade das pessoas sem conseguir extinguir a criminalidade. Ou o Brasil não registrou 60 mil homicídios em 2016?

Essa confusão aparece nas palavras das autoras da ADPF 442, por exemplo, quando argumentam que, a despeito da proibição do aborto, ele continua sendo praticado no Brasil e que sua criminalização seria, portanto, inadequada como medida para fomentar a diminuição do número de abortos. As autoras simplesmente desconsideram que, sem a lei, o número de abortos poderia aumentar – o que é exatamente a preocupação de muitos pesquisadores, como se verá a seguir.

Na petição, as autoras afirmam, ao comparar as taxas de aborto em diferentes regiões do mundo, que “não há evidências de que leis altamente restritivas ao aborto possam ser associadas a menores taxas de aborto”. Mas não basta comparar países diferentes com leis diferentes. A análise mais adequada para entender o papel da lei no número de abortos realizados em um país também envolve questões sociais e culturais, bem como a consideração de quanto variam as taxas de aborto, em um determinado país, com a mudança no regramento sobre isso. A lei importa, assim como importam políticas públicas de conscientização contra o aborto, educação e planejamento familiar, além de uma miríade de outros fatores.

Necessidade

A segunda etapa do método da proporcionalidade é a análise da necessidade da medida que se pretende impugnar. Virgílio Afonso da Silva, no mesmo texto, explica: “um ato estatal que limita um direito fundamental é somente necessário caso a realização do objetivo perseguido não possa ser promovida, com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito fundamental atingido”. Em outras palavras, uma medida que tenha como objetivo proteger direitos fundamentais, mas que restringe outros direitos fundamentais, só pode ser necessária se não houver outra medida menos restritiva disponível para o legislador.

Para as autoras da APDF 442, a criminalização do aborto não é, dentre as medidas que restringiriam direitos fundamentais das mulheres, o ato mais eficaz para a proteção dos direitos do nascituro, porque, de acordo com a experiência internacional, descriminalizar o aborto se revelaria um meio mais eficaz para alcançar esse objetivo. Na petição inicial, porém, só o caso da França é citado. Nenhum outro país é objeto de análise do documento neste passo do argumento.

Segundo as autoras, a explicação para o que ocorreu na França – e que se supõe que ocorreria no Brasil –, é contra-intuitiva. “A primeira razão é pela possibilidade de os serviços de saúde acolherem as mulheres na rota crítica do acesso ao aborto (…) sem o risco de perseguição penal ou receio do estigma”, escrevem na petição. “A segunda razão é que países que garantem maior acesso a contraceptivos tendem a diminuir a taxa de aborto, enquanto a taxa de fertilidade é mantida constante”, completam.

“Em termos puramente lógicos, essa ideia até poderia fazer sentido, mas na prática, não é isso que acontece”, afirma Lenise Garcia. “O atendimento que se dá à mulher é, em geral, muito precário. Então, dizer que a mulher vai ser acolhida, eventualmente dissuadida de fazer o aborto, não é verdade. Além disso, é possível acolher e melhorar a saúde materna sem legalizar o aborto, como no caso da Polônia e do Chile”, completa.

“É evidente que legalizar o aborto transforma a sua prática em um método contraceptivo, mesmo que se diga o contrário. A mentalidade que se cria é muito clara: quando o contraceptivo falha, recorre-se ao aborto”, elucida a professora.

Há vários dados que parecem confirmar isso: na França, mulheres mais jovens estão recorrendo cada mais vez à repetição de procedimentos abortivos; na Espanha, 21% das gravidezes de mulheres com menos de 20 anos terminavam em aborto em 1990, enquanto esse número subiu para 55% em 2015; há também pesquisas mostrando que, em Cuba e em países que faziam parte do bloco soviético, a prática do aborto é naturalizada e se transforma não só em mais uma opção de contracepção, mas até em verdadeiro substituto de métodos contraceptivos.

Lenise destaca que, pela experiência de grupos informais que acolhem mulheres na “rota crítica” do aborto, o aconselhamento pode ser muito frutífero. Mas isso depende do tipo de aconselhamento e acompanhamento que se dá. “Inclusive, fala-se muito na liberdade da mulher, na escolha da mulher, mas a experiência que se tem é que a maior parte das mulheres está sendo pressionada a abortar: pressionada pelo pai da criança, pela família, pelo chefe”, diz a professora. “De fato, o aborto quase nunca é uma escolha da mulher; é resultado de uma falta de escolha, de uma falta de alternativa”, ressalta.

Uma ressalva importante: mesmo que se aceitasse a tese de que a legalização do aborto diminuiria, inexoravelmente, o número de procedimentos, seria difícil aceitar esse passo do argumento das autoras da ADPF 442 sem diminuir, ao mesmo tempo, o valor jurídico e moral da vida dos seres humanos não nascidos. Os grandes países que legalizaram a prática ainda realizam centenas de milhares de abortos por ano. De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde, ocorreram 881.377 abortos na Rússia e 664.335 nos Estados Unidos em 2013; 212.983 na França e 196.062 no Reino Unido em 2014. Entre 1978 e 1997, os Estados Unidos registraram mais de 1 milhão de abortos a cada ano.

Uma analogia moral ajuda a perceber o incômodo nesse raciocínio e os limites da aplicação da regra da proporcionalidade em casos envolvendo o direito à vida. Se porventura se descobrisse que descriminalizar o homicídio reduziria o número total de assassinatos no Brasil, uma vez que isso “acolheria” os potenciais homicidas “na rota crítica” do crime, “sem perseguição penal ou receio de estigma”, aceitaríamos legalizar o assassinato? Para que esse argumento faça sentido no caso do aborto, está operando, mesmo contra a suposição das autoras, a premissa de que a vida de embriões e fetos tem menos valor que a vida dos seres humanos já nascidos e das mulheres, em particular – uma tese que já foi discutida acima.

Proporcionalidade

Mesmo que uma medida seja adequada e necessária, o método da proporcionalidade exige um terceiro exame, chamado proporcionalidade em sentido estrito. De acordo com Virgílio Afonso da Silva, “o exame da proporcionalidade em sentido estrito […] consiste em um sopesamento entre a intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção da medida restritiva”.

Um exemplo extremo e elucidativo que Afonso da Silva dá é o seguinte: uma política governamental que internasse compulsoriamente HIV-positivos para proteger o direito à saúde da coletividade passaria pelos testes da adequação e da necessidade – mas “para que [uma medida] seja considerada desproporcional em sentido estrito, basta que os motivos que fundamentam a adoção da medida não tenham peso suficiente para justificar a restrição ao direito fundamental atingido”, escreve.

As autoras da ADPF 442 alegam que a atual regra da criminalização do aborto no Brasil restringiria vários supostos direitos fundamentais das mulheres – e, por isso, o STF deveria mudar essa regra, descriminalizando a prática até a 12ª semana de gestação.Entre os direitos desrespeitados às mulheres estariam: a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, inciso III), a cidadania (CF, art. 1º, inciso II) e a promoção do bem de todas as pessoas, sem qualquer forma de discriminação (CF, art. 3o, inciso IV); o direito à saúde (CF, art. 6º) e à integridade física e psicológica das mulheres; a proibição de submissão a tortura ou a tratamento desumano ou degradante (CF, art. 5º, III); o direito à saúde (CF, art. 6º) lido à luz da inviolabilidade do direito à vida e à segurança (CF, art. 5º, caput), “por relegar mulheres à clandestinidade de procedimentos ilegais e inseguros”; o direito ao planejamento familiar (CF, art. 226, §7º); o direito fundamental à liberdade (CF, art. 5º, caput); os direitos sexuais e reprodutivos e o princípio da igualdade de gênero, decorrentes, na visão das autoras, dos direitos à liberdade e igualdade.

De saída, a lista cumpre uma função retórica clara que se reflete na análise da proporcionalidade da criminalização do aborto: como pode o direito à vida de um feto ou de embrião se sobrepor a tantos direitos das mulheres? Não pode – é a resposta da ADPF 442. Salta aos olhos, porém, que em nenhum momento a peça jurídica aborda algo óbvio: toda gravidez, exceto nos casos de estupro, resulta de um ato livremente escolhido de ter uma relação sexual. Quem lê a ADPF 442 fica com a impressão de que o Brasil é uma espécie de China ao avesso – em que a lei obrigaria todas as mulheres a engravidarem o tempo todo, transformando-as em parideiras estatais.

Em diversos momentos, as autoras de fato dizem que a criminalização do aborto corresponde a tornar a gravidez “compulsória”. O artifício retórico impressiona os incautos. “Hoje, o Estado brasileiro torna a gravidez um dever, impondo-a às mulheres, em particular às mulheres negras e indígenas, nordestinas e pobres, o que muitas vezes traz graves consequências ao projeto de vida delas”, escrevem. “A criminalização do aborto e a consequente imposição da gravidez compulsória compromete a dignidade da pessoa humana e a cidadania das mulheres, pois não lhes reconhece a capacidade ética e política de tomar decisões reprodutivas relevantes para a realização de seu projeto de vida” [destaque no original], dizem ainda.

As autoras ainda ressaltam que a “gravidez compulsória” atinge mais as mulheres pobres, negras, indígenas e nordestinas. “A desigualdade racial e de classe no exercício do direito de determinar se gostaria de ter e quando seria o melhor momento para o nascimento de filhos torna o aborto um evento mais comum na vida de mulheres que vivenciam maior vulnerabilidade social”, escrevem. A constatação pode até ser verdadeira, mas escamoteia o problema de fundo, que é a própria desigualdade social e, em particular, a falta de investimentos em saúde básica e no atendimento pré-natal. Essas são as medidas que realmente fazem despencar a mortalidade materna.

Seja como for, não há como imaginar, se embriões e fetos são pessoas que têm direito fundamental à vida, que a proteção a esse direito não tenha peso suficiente para permitir a restrição a um pouco de liberdade das mães. Essas mães não serão internadas em campos de concentração, nem terão necessariamente de morrer vítimas de procedimentos abortivos inseguros: para isso basta que escolham não fazer o aborto, assim como escolheram – exceto no caso de estupro – ter relações sexuais. A retórica da “gravidez compulsória”, onipresente na petição inicial da ADPF 442, escamoteia a questão da responsabilidade individual: ter relações sexuais traz consequências, uma das quais é a possibilidade de vir a abrigar uma nova vida humana dentro de si. Isso também não significa desconhecer as dificuldades e dramas concretos das vidas de muitas mulheres, uma questão que será tratada no tópico “Alternativas ao aborto”.

Uma nota de rodapé no texto de Afonso da Silva – que parece passar despercebida pelas autoras da ADPF 442 –, explicando como Robert Alexy  (jurista alemão que sistematizou o método da proporcionalidade e é fartamente citado pelos tribunais brasileiros) entende as colisões entre direitos fundamentais, ajuda a elucidar o que está em jogo: “Alexy costuma dividir o grau de restrição de um direito fundamental e o grau de importância da realização do direito que justifica a medida restritiva em alto, médio e pequeno. Assim, se o grau de restrição a um direito é médio – portanto longe de implicar a sua não realização –, mas o grau de importância da realização do direito colidente é pequeno, então a medida é desproporcional”. Trocando em miúdos, será desproporcional toda restrição mais severa que a importância a que visa a medida restritiva.

Por mais que uma gravidez indesejada possa restringir em algum grau os direitos da mãe – se aceitarmos o argumento da ADPF 442–, a importância da realização do direito à vida terá mais peso que essa restrição, pela singela razão de que tudo o mais depende do direito à vida: não só os demais direitos que o ser humano não nascido tem e venha a ter, mas sua própria existência. Alguém imagina que proteger o direito à vida de embriões e fetos não seja altamente importante? Só aqueles que, expressa ou inconscientemente, defendem a posição de que os seres humanos não nascidos não são realmente pessoas dignas de proteção jurídica e moral – um “amontoado de células”, como às vezes se diz. Essa visão já foi contestada.

Repisar essas obviedades não é negar o drama concreto que as mulheres vivem em caso de gravidezes indesejadas em situações extremas. “Seria arrogante e temerário julgar mulheres nessas circunstâncias e declará-las moralmente inferiores porque elas veem o aborto como a única saída de um dilema sombrio (…) A não ser que conheçamos as intenções da pessoa envolvida, um juízo moral definitivo sobre a culpabilidade nunca deve ser feito, embora se possa fazer um juízo moral acerca da ação do agente, considerada objetivamente”, escreve o filósofo Christopher Kaczor em seu livro The Ethics of Abortion. Ele diz ainda:

Também é importante notar que todas essas circunstâncias – relacionamentos abusivos, pobreza, humilhação, etc. – podem igualmente, ou ainda mais, afligir mães e pais de crianças que já nasceram […] Tanto os críticos quanto os defensores do aborto – e do infanticídio – concordariam que mesmo as mais terríveis circunstâncias não justificariam matar intencionalmente uma criança de seis anos. Nessas circunstâncias, todos concordariam que o que deve ser feito é buscar com afinco soluções para os problemas afligindo a mãe e o filho […] Mesmo se as soluções para esses problemas não forem totalmente adequadas – ou se nenhuma solução puder ser encontrada – ainda assim não seria permissível matar crianças de seis anos.”

O que o STF já decidiu

As autoras da ADPF 442 afirmam que alguns precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF) permitiriam uma decisão de legalizar o aborto até a 12ª semana de gestão: a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.510 e a ADPF 54. A primeira decisão permitiu pesquisas com células-tronco embrionárias que destruam embriões congelados. A segunda permitiu o aborto de fetos anencefálicos.

Embora ambos os julgamentos tenham inovado a ordem jurídica brasileira de forma controversa, esses precedentes não autorizam a legalização do aborto. As autoras citam também como precedente o HC 124.306, mas este julgamento não pode ser considerado um precedente, porque é uma simples decisão – equivocada – de uma Turma do Supremo.

De acordo com a ADPF 442, o tribunal teria estabelecido, no julgamento da ADI 3.510, a tese de que os seres humanos não nascidos não são pessoas no sentido constitucional e, portanto, não teriam direitos fundamentais até o nascimento com vida. Na ADPF 54, a corte teria permitido o alargamento das exceções à punição do aborto, ao considerar os efeitos da criminalização na vida das mulheres.

“Foi na ADPF 54 que a Suprema Corte brasileira verdadeiramente se movimentou para a primeira análise de constitucionalidade dos efeitos da criminalização do aborto pelo Código Penal de 1940. O enfrentamento na ADI 3.510 do critério no nascimento com vida para a imputação de direitos fundamentais permitiu à Corte um acúmulo interpretativo sólido para o enfrentamento da questão da anencefalia, em que o quadro fático da malformação levava a uma interpretação de atipicidade do aborto nesse caso”, diz a petição inicial.

ADI 3.510

De fato, em 2008, na ADI 3.510, o STF ensaiou endossar a posição jurídica e moral de que a proteção constitucional à vida só começa com o nascimento do ser humano com vida. Durante a gestação, conforme o desenvolvimento do feto, essa proteção iria aumentando. Essa posição, chamada gradualista, não é neutra nem imparcial. Pelo contrário, desde que vem sendo adotada pelos tribunais mundo afora, ela tem sido duramente criticada por juristas e filósofos morais. Da mesma forma, a visão de que o ser humano é uma pessoa humana desde a concepção não é uma posição necessariamente religiosa e pode ser defendida com base em argumentos puramente racionais.

Este texto já mostrou que a concepção gradualista do direito à vida, além de ser problemática, não tem esteio na tradição constitucional brasileira. Trata-se de uma invenção recente de um STF que vem ganhando cada vez mais poder. No entanto, mesmo que alguns dos ministros já tenham saído do armário e escancarado suas posições morais, o julgamento da ADI 3.510 não permite a legalização do aborto: na ocasião discutia-se a proteção de embriões congelados que nunca seriam implantados no útero das mães. Essa é uma diferença crucial. No dispositivo da sentença, a tese gradualista aparece no tópico “A Proteção Constitucional do Direito à Vida e os Direitos Infraconstitucionais do Embrião Pré-implanto” [destaque nosso].

“Na ADI 3.510, estávamos falando de embriões congelados. Não é caso de aborto. O Código Penal é claro ao dizer que o aborto se dá no ambiente uterino. Um ser vivo tem de ter a capacidade de se mover por conta própria, de autodesenvolvimento. O embrião congelado não tem como se desenvolver sem uma intervenção exógena, sem o médico implantá-lo em um útero”, explica Thiago Rafael Vieira, especialista em Direito do Estado e diretor da Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (Anajure).

O acórdão da ADI 3.510 deixa claro: “É constitucional a proposição de que toda gestação humana principia com um embrião igualmente humano, claro, mas nem todo embrião humano desencadeia uma gestação igualmente humana, em se tratando de experimento “in vitro”. Situação em que deixam de coincidir concepção e nascituro, pelo menos enquanto o ovócito (óvulo já fecundado) não for introduzido no colo do útero feminino”. Em seguida: “Não se cuida de interromper gravidez humana, pois dela aqui não se pode cogitar. A ‘controvérsia constitucional em exame não guarda qualquer vinculação com o problema do aborto’”.

Essa distinção não é irrisória, porque corresponde à diferença entre potencialidade ativa e potencialidade passiva de um ser. Kaczor, o autor de The Ethics of Abortion, explica que a potencialidade passiva é a possibilidade que um ser tem de se tornar outra coisa por intervenção de uma força externa. “Já a potencialidade ativa não é nada além que o crescimento ou a maturação, um autodesenvolvimento ativo. Por exemplo, um arbusto tem a potencialidade passiva de ser esculpido na forma da perna de um banquinho, mas se desenvolve ativamente até tornar-se uma árvore madura”, escreve.

Perpassa todos os debates na ADI 3.510 a compreensão de que os embriões congelados, que eram a “sobra” dos procedimentos de fertilização de casais, nunca seriam implantados em um útero e, portanto, nunca seriam seres humanos adultos. A pesquisadora Débora Diniz, por exemplo, é citada pelo relator da ação, ministro Carlos Ayres Britto: “O diagnóstico de inviabilidade do embrião constitui procedimento médico seguro e atesta a impossibilidade de o embrião se desenvolver. Mesmo que um embrião inviável venha a ser transferido para um útero, não se desenvolverá em uma futura criança. O único destino possível para eles é o congelamento permanente, o descarte ou a pesquisa científica”.

Diante desse fato, a escolha diante do STF era proteger integralmente um embrião fecundado fora do corpo da mulher que ficaria para sempre congelado, ou permitir que pudessem tornar-se material de pesquisas, que eventualmente redundariam em benefícios para outros seres humanos. Independentemente da correção ou não dessa decisão do Supremo, ela não pode ser precedente para legalizar o aborto, que consiste em interromper uma gravidez e destruir um ser humano que, sem intervenção externa, em geral se desenvolverá plenamente.

Kaczor também explica a diferença entre deixar de iniciar um determinado processo causal – no caso, a gestação – e interrompê-lo depois de iniciado. “Embora normalmente não seja errado não fazer uma promessa, é errado quebrar essa promessa no meio do caminho. Normalmente, não há uma obrigação de ajudar um amigo com a mudança, mas se eu estiver ajudando um amigo a carregar um piano de cauda até o quarto andar e, no meio do caminho, na escada, repentinamente for tomar sorvete, deixando meu amigo lidar com o objeto imenso, então eu fiz algo errado”, diz o filósofo.

“Se eu deixar de te dar cinco dólares da minha carteira, eu deixei de melhorar a sua situação, mas nem por isso piorei a sua situação (…) Mas se eu roubar cinco dólares da sua carteira, eu piorei a sua situação de fato, o que é, por óbvio, moralmente culpável (…) Abortar um feto humano ou matar um recém-nascido é de fato piorar a situação do feto humano ou do recém-nascido, já que matar priva o ser de sua vida”, completa Kaczor.

ADPF 54

No julgamento da ADPF 54, em 2012, o STF entendeu que não há crime de aborto na interrupção da gravidez de fetos anencefálicos, mas a diferença entre as situações em jogo é gritante. O Supremo raciocinou com base em duas noções. Primeiro, dada a inexistência de expectativa de vida depois do nascimento, no caso particular dos fetos anencefálicos, a interrupção da gravidez não seria fato típico, ou seja, não seria crime de acordo com o artigo 124 do Código Penal.

Segundo, mesmo que se reconhecesse direito à vida aos fetos anencefálicos, a interrupção da gravidez poderia ser contemplada pela excludente de punição do inciso I do artigo 128, que dá à mulher a possibilidade de optar pela própria vida, em caso de risco, em detrimento do ser humano não nascido.

“Na ADPF 54, o tribunal usa a terminologia interrupção da gravidez como complemento do artigo 128 [do Código Penal]: o aborto do feto anencefálico seria um aborto terapêutico pela suposta tortura que a genitora estaria sofrendo por gerar uma criança que, no ambiente extra uterino, não iria viver”, explica Vieira. “Mesmo no caso da ADPF 54, não cabe falar em tortura: tortura é um ato injusto de um terceiro. No caso da ADPF 442, seria ainda pior insistir nesse argumento: por conta de um descuido da mulher, o Estado estaria torturando a mulher por gestar a criança?”, questiona.

De fato, o ministro relator da ADPF 54, Marco Aurélio Mello, foi taxativo ao alertar que “aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida potencial. No caso do anencéfalo, repito, não existe vida possível. A anencefalia, que pressupõe a ausência parcial ou total do cérebro, é doença congênita letal, para a qual não há cura e tampouco possibilidade de desenvolvimento da massa encefálica em momento posterior. O anencéfalo jamais se tornará uma pessoa. Em síntese, não se cuida de vida em potencial, mas de morte segura”, escreveu o ministro.

A Advocacia-Geral da União, em manifestação sobre o caso no STF, também percebeu que essa decisão do STF não pode servir de precedente para legalizar o aborto: “ao julgar a Arguição de Descumprimento nº 54, essa Suprema Corte afastou a alegação da arguente no sentido de que seria necessário proceder à ponderação dos direitos mencionados em sua petição inicial. De fato, o fundamento principal do voto condutor do acórdão prolatado em tal julgamento consistiu na inexistência de conflito efetivo entre direitos, dada a ausência de expectativa de vida dos fetos anencefálicos”, escreveu.

A ministra Cármen Lúcia, presidente do STF, também foi clara durante o julgamento da ADPF 54: “Também faço questão de frisar que este Supremo Tribunal Federal, nesta tarde, não está decidindo nem permitindo o aborto. Essa é uma questão posta à sociedade (…) Portanto, não estamos falando de introduzir no Brasil a possibilidade de aborto, menos ainda de aborto em virtude de qualquer deformação, mas a questão da anencefalia que diz com a possibilidade ou não vida”, disse.

O não precedente

Em novembro, a 1ª Turma do STF surpreendeu o país ao decidir, no curso do Habeas Corpus 124.306, uma questão que não estava sendo discutida no processo. Na ocasião, médicos e funcionários de uma clínica aborteira pediam liberdade ao STF, pois tinham sido presos preventivamente pelo crime de aborto com consentimento da gestante e pelo de formação de quadrilha. Eles alegavam que a prisão não cumpria os requisitos do Código de Processo Penal (CPP).

Depois de o relator do HC, ministro Marco Aurélio Mello, ter votado pela liberdade dos acusados, discutindo apenas questões de processo penal, no que era apenas mais uma entre milhares de ações parecidas que o STF recebe, o ministro Luís Roberto Barroso pediu vista do processo e, quando trouxe seu voto de volta à turma, foi muito além do objeto da ação. Barroso não só se posicionou a favor da concessão do HC, mas afirmou que o regramento atual do Código Penal que trata sobre o crime de aborto deve ser considerado como não recepcionado pela Constituição Federal. O ministro defendeu ainda que não é crime o aborto feito até o terceiro mês de gestação. Foi acompanhado pelos ministros Luiz Edson Fachin e Rosa Weber e o placar terminou 3×2.

Na época, em entrevista ao Justiça comentando a decisão da 1ª Turma, o advogado André Brandalise apontou dois equívocos de Barroso: não se deve entrar no mérito da tipicidade penal no julgamento de um Habeas Corpus; o Supremo não poderia ter se manifestado sobre o mérito, porque o caso ainda estava tramitando no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ). Não eram simples equívocos.

Quatro meses depois, em março deste ano, quando a ADPF 442 ingressou no STF, a derrapagem de Barroso revelou-se bem mais do que um mero descuido. Junto à ADI 3.510 e à ADPF 54, o HC veio compor o caldo retórico daqueles que veem, nas posições heterodoxas do STF, o aborto legalizado como o rumo inexorável do direito brasileiro.

Alternativas ao aborto

Existem muitas iniciativas, no Brasil e no mundo, de programas de acolhimento e acompanhamento de mulheres grávidas em situações dramáticas. Vários são de grupos religiosos, mas há também programas de caráter não confessional e políticas públicas estatais. A atenção à mulher e a valorização da vida desde a concepção não é um assunto necessariamente religioso. Todos esses programas oferecem atendimento médico, psicológico e educação sexual e muitos deles também apoiam financeiramente mulheres pobres, custeando a gravidez e operando para recolocá-las, ou seus parceiros, no mercado de trabalho. Trata-se de assistencialismo onde este é necessário, mas também de criação de autonomia para as mulheres.

Saúde integral

Mercedes Figueroa, pós-graduada em Educação Integral da Sexualidade, é vice-presidente da Associação Filhos da Luz, que acolhe mulheres em situação de gravidez de crise. São as gestações indesejadas, inesperadas ou até mesmo planejadas, mas que acabaram sendo problemáticas. “Nosso trabalho tenta encontrar a raiz do problema oferecendo atendimento personalizado no marco da saúde integral, para evitar que se repita uma situação semelhante no futuro. As gestantes são encaminhadas para aproveitar os benefícios do sistema público, mas, para poder atender a alta demanda, começamos a fazer parcerias com instituições privadas”, explica.

Mercedes destaca que ações como essas já existem há bastante tempo nos Estados Unidos. Não por acaso. A legislação sobre o aborto começou a ser flexibilizada no estado americano do Colorado em 1967, com base em um modelo de Código Penal elaborado por um grupo de juristas uma década antes. A reação dos grupos pró-vida começou tímida ainda nos anos 1960, mas catalisou-se depois de 1973, quando, no julgamento de Roe. vs. Wade, a Suprema Corte americana liberou o aborto. As duas maiores organizações que apoiam os chamados centros de gravidez no país, a Heartbeat International e a CareNet, surgiram, respectivamente em 1971 e 1973.

De acordo com o último relatório de impacto da CareNet, divulgado em 2015, cerca de 8 em cada 10 mulheres que estão pensando em abortar e procuram um dos mais de 1100 centros da rede desistem do procedimento. Só em 2015, foram 73 mil vidas salvas pela desistência de abortos. A rede oferece acompanhamento de saúde durante a gravidez, educação e capacitação para os pais das crianças, recursos para apoiar as mães e as famílias e o encaminhamento posterior para outros tipos de serviços sociais. A CareNet define sua atuação não só como pró-vida, mas como pró-vida abundante, o que pode ser resumido nas palavras de Roland Warren, CEO da organização:

Não é só salvar um bebê. É criar uma criança.”

Há muitos outros programas que podem servir de inspiração para o Brasil. “Na Argentina conheci o Portal de Belén, AMBO, Merced Vida e Haciendo Camino. Na Itália, o Segretariato Sociale per la Vita ONLUS. Os Centros de atendimento às mulheres gestantes na América central e do Sul: Aprovi na Guatemala, Fundação Mami na Colômbia, Instituto Feminino de Saúde Integral na Costa Rica, Fundação por uma Vida na Bolívia. Isso só para nomear alguns. São muitos, muitos mesmo”, destaca Mercedes. Há três coisas em comum ao modelo de todos esses projetos, na visão da vice-presidente:

  1. O objetivo dos programas é a proteção das mulheres;
  2. As ações visam às mulheres durante a gravidez, e antes e depois dela;
  3. Os programas tentam encontrar a raiz do problema da gravidez de crise, tentando evitar situações semelhantes no futuro.

“Nem todas as mulheres [que atendemos] estão solteiras.  Às vezes o casamento está muito ruim, é preciso equilibrar a vida que não está feliz. Não só por estar pobre a mulher está em uma gravidez em crise. Muitas vezes, é solidão mesmo, abandono. E também não são apenas mulheres adolescentes”, diz a vice-presidente da Associação Filhos da Luz.

Mercedes também ressalta uma realidade triste por trás dos casos de mulheres que, mesmo com apoio, insistiram em abortar: “A mulher que tem orientação, apoio e informação e mesmo assim quer abortar em geral tem um parceiro, um pai ou um chefe pressionando fortemente pelo aborto”, diz. “Falam que o aborto é uma questão de liberdade, mas escuto de todas as mulheres que abortam que era a única opção que tinham. Se era a única opção, que liberdade é esta?”, questiona.

Adoção

Abandonar um filho é crime, mas sua entrega legal é um direito da mulher. Todos os profissionais e especialistas que trabalham com o acolhimento de mulheres reconhecem que, apesar de o número ser pequeno, existem aquelas que, mesmo depois do nascimento da criança, desejam entregá-la para a adoção. Garantir um bom funcionamento da rede de adoção de crianças é uma parte importante de uma política integral de valorização da vida.

Sara Vargas, presidente da Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção (ANGAAD), destaca os principais desafios da adoção no Brasil: a conscientização sobre a entrega legal de crianças e a sintonia da rede de proteção à infância, que envolve desde as Varas de Infância, passando pelo Ministério Público e a Defensoria Pública, pelos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e Conselhos Tutelares, até os grupos de apoio da sociedade civil. “Nos lugares onde as redes trabalham em sintonia, com um bom acompanhamento pré e pós-adoção, o índice de devolução [de crianças adotadas] é praticamente nulo”, diz Sara.

“Nós até iniciamos uma política de conscientização sobre a entrega legal das crianças. Ainda há uma marginalização muito grande das mulheres que desejam entregar, elas imaginam que entregar legalmente o filho seja um crime”, diz Sara. “E as mulheres são desencorajadas a entregar, muitas vezes pelos próprios profissionais de saúde. As gestantes que, no momento de desespero, procuram ajuda, se elas forem acolhidas, elas podem até resolver ficar com os filhos. Mas, de forma geral, ainda faltam informações e profissionais qualificados para lidar com isso”, afirma.

Segundo dados do Cadastro Nacional de Adoção (CNA) do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), há 42.843 pretendentes e 8.450 crianças cadastradas, segundo dados de janeiro de 2018. Para a presidente da ANGAAD, isso se deve ao fato de a maior parte das crianças e adolescentes disponíveis para a adoção ter mais de sete anos, irmãos, ou algum problema de saúde, enquanto os pretendentes desejam filhos menores, saudáveis e sem irmãos.

Sara destaca que é preciso fugir dos extremos: não se pode querer tirar a criança da família e entregar para adoção só porque os familiares são pobres, nem insistir demais que ela fique com a família biológica. “Pela normativa internacional, a criança é prioridade absoluta. Caso não haja possibilidade de a família biológica dar um ambiente seguro para a criança, é preciso pensar na criança em primeiro lugar e encaminhar para a adoção. Não dá para esperar a criança completar 10 anos para mandar definitivamente um abrigo. Fica nesse vai e volta e a criança vai acumulando traumas”, avalia Sara.

Congresso Nacional

Colaborar com o Congresso Nacional para a elaboração de políticas públicas que reconheçam o drama das mulheres grávidas, muitas vezes pobres, abandonadas pelos parceiros e sem o apoio da família, é uma velha ocupação de Cláudio Fonteles, que foi procurador-geral da República (PGR) entre 2003 e 2005. Fonteles notabilizou-se pela atuação na ADI 3.510, que questionava as pesquisas de células-tronco que destruíssem os embriões congelados. A defesa da vida desde a concepção nunca impediu Fonteles de lutar pela vida das mulheres.

“O Estado fez a Lei Maria da Penha, que é maravilhosa. É perfeito defender a mulher e impor restrições aos homens. Nesse marco legal, o Estado acolhe a mulher e as filhas e provê uma visão multidisciplinar em torno dessa mulher para ela se desenvolver e ganhar autonomia”, explica Fonteles. “Por que o Estado não dá o passo seguinte e acolhe a mulher abandonada? Precisamos de uma ‘Lei Maria do Abandono’. É possível criar Unidades de Acolhida da Mulher. Ali, se as mulheres são pobres, vão ter estudo, alguma tentativa de profissão. Podemos fazer parcerias entre União, estados e municípios. É preciso constituir uma rede protetiva da mulher e do feto em gestação”, opina o ex-PGR.

Fonteles destaca também o Projeto de Lei (PL) 478/2007, o chamado Estatuto do Nascituro, que está em tramitação no Congresso Nacional. O projeto é uma reação à decisão do STF na ADI 3.510, em 2005, que ensaiou relativizar a proteção jurídica à vida dos seres humanos não nascidos. A atual versão do texto define nascituro como o ser humano concebido, mas ainda não nascido e prevê que “desde a concepção são reconhecidos todos os direitos do nascituro, em especial o direito à vida, à saúde, ao desenvolvimento e à integridade física e os demais direitos da personalidade”.

O texto propõe que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar ao nascituro, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, ao desenvolvimento, à alimentação, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à família, além de colocá-lo a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Nessa linha, o projeto cria a obrigação para o Estado de arcar com os custos para cuidar da vida, da saúde, do desenvolvimento e da educação da criança, até que o pai estuprador seja responsabilizado pelo pagamento da pensão ou a criança seja adotada, se for a vontade da mãe.

“Tudo isso se insere em uma proposta de visão de condução do Estado. Estamos diante de um estado humanista ou funcionalista? Num Estado funcionalista, a pessoa humana vale pela relação de custo-benefício. Na filosofia funcionalista, no mundo tecnocrata, não há espaço para a consideração da integralidade da pessoa humana”, diz Fonteles. “Já a defesa da vida se insere em uma tradição humanista. Você vê a pessoa humana na sua integralidade. Daí se parte para uma forte visão de solidariedade humana”, afirma.

Dificuldades

O Estatuto do Nascituro tramita no Congresso já há 10 anos. Apesar de o Brasil ter derrubado os índices de mortalidade materna nas últimas décadas, a saúde pública ainda patina e poucas iniciativas têm enfrentado o drama das gravidezes indesejadas, da falta de planejamento familiar e educação sexual e da crise de valores que assola a juventude. Isso abre o flanco, na inflamação do debate público, para que a retórica pró-aborto possa acusar aqueles que defendem a vida desde a concepção de só defenderem essa vida, e não a das mulheres ou a das crianças já nascidas.

Este texto da série Análise da ADPF 442 buscou mostrar que isso não é verdade. Brasil afora, como Mercedes, há milhares de outros voluntários, em dezenas de pontos de apoio a mulheres em situação de gravidez de crise, funcionando sem financiamento do poder público, bancados apenas por doações e benfeitorias. “A problemática da gestante em crise é um assunto relativamente novo, no sentido de que existe desde sempre, mas nos últimos anos a sociedade está abrindo os olhos para identificá-lo”, diz Mercedes. “Existem projetos de lei, mas geralmente são abafados com a discussão de legalizar o aborto e com isso o problema é calado, mas não solucionado”, alerta.

A longa experiência do ex-PGR Cláudio Fonteles com o Congresso Nacional também lhe ensinou algumas coisas. “A Lei Maria da Penha surgiu a partir de uma vítima de uma agressão brutal e isso chocou a sociedade. Os políticos, motivados pelo estardalhaço, diante de fatos objetivamente postos, vão tentar providenciar uma solução para satisfazer a opinião pública”, diz.

“Esse fato do aborto não se vê. Não tem o choque midiático. O estardalhaço da mídia não trabalha com as questões de fundo, a mídia quer a análise superficial, que é o visual. É difícil tratar de matérias que não são perceptíveis a olho nu: por que o político não quer fazer saneamento básico? Porque está embaixo da terra e ninguém vê – a mentalidade funcionalista aparece outra vez. O Estado que não persegue valores está falido”, conclui.

Embora a eventual aprovação do Estatuto do Nascituro afaste o Estado da mentalidade funcionalista, isso não esgota as necessidades de políticas públicas para a mulher. De qualquer maneira, seria uma baliza importante para que essas políticas sejam pensadas a partir do marco da dignidade da vida em todos os seus estágios, sem que o fantasma da legalização do aborto paire sobre o Brasil.

Quem luta pela vida no STF

Dezenas de organizações pedem para ingressar como amici curiae [amigos da corte] na discussão da ADPF 442. Dentre essas, todas as seguintes se manifestaram pela proteção da vida desde a concepção e só as três primeiras já foram admitidas no processo:

Além disso, a Advocacia-Geral da União (AGU), o Senado Federal e a Câmara dos Deputados também se manifestaram contrários ao pedido do PSOL na ADPF 442: